29.9.09

“Não sei se é sonho, se realidade”

“Não sei se é sonho, se realidade” dizia Fernando Pessoa.
Sonhei um sonho. Sonhei que Tempo e Espaço quebravam e me deixavam ser seus Senhor.
Aqui estou eu, dono do Tempo e do Espaço.
Fiz do Espaço, Tempo e assim de Tempo e Tempo o mundo ficou feito.
Sem os limites do Espaço, fiz o nosso encontro possível. Não há mais viagem a não ser aquela mesmo que se faz no interior do meu Eu para o Teu.
Um Toque. Realmente não há Espaço. Um Beijo. Não há mesmo Espaço. Um…desvaneceste. Já não sou o Senhor do Tempo e do Espaço. Como feras indomáveis que são, traíram-me. Acordo. Já não estou no Mundo dos Sonhos.
Ó Tempo e Espaço, que crueldade fazeis ao existirem. Que Titans implacáveis sem piedade vós sois.

De novo à Realidade.

27.9.09

Versículo 1

Em príncipio deus criou o mundo.

26.9.09

Ascenseur pour l'échefaud

Ascensão dos abençoados, Jerónimo Bosch (1490)

22.9.09

Carrilho não deixa a cultura arder bem na Europa

A propósito deste post relativo à votação para a eleição do novo director da UNESCO, chegou-nos hoje a notícia de que o representante português neste orgão das Nações Unidas, Manuel Maria Carrilho, ex-ministro da cultura de Guterres e ex-candidato à Câmara Municipal de Lisboa, contrariando ordens expressas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, pasta gerida por Luís Amado, ex-ministro da Defesa, recusou-se a votar no candidato egípcio, Faruk Hosni, entre outras coisas por causa das célebres declarações referenciadas no post citado. A notícia aqui, no site do jornal Público. Carrilho, aquele tipo que ninguém gosta como pessoa, o que lhe dificulta a vida na eleição para cargos políticos públicos, é apesar de tudo, como sempre mostrou ser, uma das pessoas com mais carisma e intelectualmente mais valorosas que há na política portuguesa, e isso ficou hoje bem expresso. Acima de tudo, mostrou ser um insigne defensor da cultura europeia, logo, um defensor da liberdade e da democracia. Só por isto já merece Carrilho a nossa aprovação e admiração, ao contrário dos imbecis dos negócios estrangeiros indiferentes à hipótese de ver destruída grande parte da produção intelectual ocidental. Enfim, é bom saber que não estamos sós na defesa, intransigente, da cultura europeia.

Do filme Fahrenheit 451 de François Trauffaut baseado na obra de Ray Bradbury

21.9.09

Não queria patear
Antes de conhecer
Os cães negros do México
Que dormem sem sonhar
Os macacos de rabo pelado
Devoradores de trópicos
As aranhas de prata
De ninhos cobertos de bolhas
Não queria patear
Sem saber se a lua
Sob um falso ar de ceitil
Tem um lado pontiagudo
Se o sol é frio
Se as quatro estações
São só realmente quatro
Sem ter experimentado
Passear de vestido
Nos grandes bulevares
Sem ter espreitado
Por um olho de esgoto
Sem ter metido o zezé
Nuns escaninhos bizarros
Não queria acabar
Sem conhecer a lepra
Ou as sete doenças
Que por lá se apanham
Nem o bom nem o mau
Me dariam desgosto
Se se se eu soubesse
Que os podia estrear
E há também
Tudo o que eu conheço
Tudo o que eu aprecio
Que sei que me dá gozo
O fundo verde do mar
Onde valsam fios de alga
Sobre a areia ondulada
A erva torrada de Junho
A terra que estala
O odor das coníferas
E os beijos daquela
Que isto mais que aquilo
A bela que aqui 'stá
O meu ursinho d'Ursula
Não queria patear
Antes de ter gasto
Sua boca com a minha boca
Seu corpo com as minhas mãos
O resto com os meus olhos
Não digo mais é preciso
Manter-se venerador
Não queria morrer
Sem que tenham inventado
As rosas eternas
O dia de duas horas
O mar na montanha
A montanha no mar
O fim de toda ador
Os jornais a cores
As crianças contentes
E tantas coisas mais
Que dormem nas cabeças
Dos geniais engenheiros
Dos jardineiros joviais
Dos sisudos socialistas
Dos urbanos urbanistas
E dos pensativos pensadores
Tantas coisas a ver
A ver e a zouvir
Tanto tempo a esperar
A procurar no escuro

E eu vejo o fim
Que fervilha e vem chegando
Com sua carranca feia
E que me abre os braços
De retorcida rã

Não queria morrer
Não senhor não senhora
Antes de ter provado o gosto que me assombra
O gosto que é mais forte
Não queria morrer
Antes de ter provado
O sabor da morte...



Boris Vian (1947-1959)

20.9.09

Acordai apócrifos,
acordai que a alvorada está sempre para chegar!

14.9.09


"Eu não sou suficientemente retrógrada para ser contra as ligações homossexuais (...) A sociedade está organizada no sentido de promover a família, no sentido de que a família é algo que tem por objectivo a procriação."

Manuela Ferreira Leite, 2009

- Minha Cara, carece porquanto de "um bocadinho assim" para se tornar suficientemente retrógada, mas já se posicionou em instâncias mais longínquas, devo dizer-lhe...

O triunfo dos apócrifos (se eles postarem)

Bruegel, o Velho, O triunfo da morte (1562)

12.9.09

Libreto para uma cantata

Esta história aconteceu quando me encontrava observando serenamente a secção de música clássica numa dessas lojas repletas de objectos culturais, em fazendo-me companhia um amigo de gostos mais comerciais que se aborrecia de morte com os meus prolongamentos , quase sempre inconsequentes porque feitos com os bolsos vazios, na ala erudita do estabelecimento. Só que desta vez era diferente, eu estava decidido a presentear-me com um objecto para o qual contribuira com menos uma boa meia dúzia de almoços na faculdade. Procurava pois a interpretação de Rubinstein dos nocturnos de Chopin. Não que eu fosse ou seja particularmente culto, pois que só com aconselhamento maior é que acabo descobrindo as melhores gravações. Em inocente comentário para o meu não menos sófrego e frustrado amigo, digo-lhe: 'É pena não ter a interpretação de Rubinstein, vou ter que me ficar pela de Lilya Zilberstein, que na verdade não fica nada atrás (dando-me ares de quem percebia da coisa) já que isto de piano, violino e música clássica no geral é quase tudo obra de 'Steins', como Bernstein, Ashkenazi, Mendelssohn, que como já se viu, mesmo os que nominalmente não são Stein, são-no espititualmente. Com excepção talvez de um ou outro Karajan que possam aparecer e de moral mais duvidosa'. Ao mesmo tempo que o meu desconfiado amigo esboçava um bocejo, vejo aproximar-se, pelo canto do olho, um sujeito alto e magro, claramente nada parco de recursos que se indignou perante o que eu houvera dito: 'Como pode fazer tal afirmação? Se está a colocar em causa as qualidades morais e a conduta ética de Karajan pois fique sabendo que é apenas a sua ignorância que evidencia'. Eu já tinha ouvido falar de alguma susceptibilidade auditiva dos músicos, mas juro que foi sem qualquer objectivo ou convicção que decidi erguer o braço em saudação para o homem que me abordou enquanto disse um pouco mais alto do que devia 'Heil, mein Führer!'. Foi só no chão com a face direita já a arder que me dei conta que um bom melómano deve ter a lúcidez necessária para nunca chegar ao ponto de considerar Wagner como o seu compositor preferido.

José António Borges
(02.08.08)

[Publicado originalmente n'O espectador intrometido]

10.9.09

Compreensão

Estreio a minha participação aqui com um parágrafo retirado da obra de Hannah Arendt, "as origens do totalitarismo" (tradução de Roberto Raposo), mais precisamente do primeiro prefácio, sobre a compreensão, esse anseio tão humano e tão pouco realizado...

"A convicção de que tudo o que acontece no mundo deve compreensível, pode levar-nos a interpretar a História por meio de lugares-comuns. Compreender não significa negar nos factos o chocante, eliminar deles o inaudito ou, ao explicar fenómenos, utilizar analogias e e generalidades que diminuam o impacte da realidade e o choque da experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso século [XX] colocou sobre nós - sem negar a sua existência, nem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela - qualquer que seja."

(Mas poderá haver realmente compreensão sem um pouco de empatia emocional? Baixar as barreiras da nossa alteridade face a tudo que não nós mesmos?)

Calvin

Vamos ao ínfimo, como Beethoven

Sou pequeno. (para ler com a música)


São tão pequeno na vastidão da pequenez que chego a pensar se há alguém grande. Somos todos invariavelmente pequenos.
Vivemos num grão de pó do universo que se mistura com o cotão estrelar numa galáxia que já de si é pequena.
Não há relatividade que me console desta ridícula pequenez.
Se não me consolo junto da ciência, quem me consola? Neste vazio sem dimensões só as certezas do nada. A fé da solidão. A companhia dos sós. Como podem ser tão sós os planetas e as estrelas que neste céu habitam?
Requiem! Requiem para vós!
Será que é essa a verdade? A do vazio?
"Temos meios para estabelecer uma vida itinerante, mas nunca teremos capacidade neuronal para tal.". Um homem pode-se dizer só, mas nunca o estará completamente. A força da atracção dos planetas ao Sol, é a mesma que nos atrai uns aos outros. Somos todos vítimas das mesmas forças. Não se é só. Um ser só, só morre, nada mais.
Se tudo é relativo, porque é que hoje eu não me acho grande aos olhos do meu próprio habitat? Continuo a achar-me pequeno neste campo de pessoas e ideias que nasce de tudo. Acreditar em nós próprios, é um grande exercício mental. Há quem diga que sim, acredito, mas esse esforço mental mente…

9.9.09

A cultura arde bem na Europa

"Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas."
Heinrich Heine

A UNESCO prepara-se para eleger um novo director para os próximo anos. Já sabemos como isto funciona: os países apresentam candidatos sendo que depois há um jogo diplomático, muito apurado e rigoroso, que redunda na vitória deste ou daquele estado sendo que parece haver sempre necessidade de ir mudando de continente, de étnia, de religião, etc. No fundo é como na entrega do Prémio Nobel da Literatura: um ano uma mulher, outro ano um homem, depois um russo, depois um sul-africano, depois um berbere, depois um índio pataxó e os bons escritores caucasianos estão sempre lixados. Pois bem, o Egipto apresentou o seu candidato, e ao que parece, será ele o próximo director da UNESCO. Tudo aponta para aí. Trata-se de Faruk Hosni, ex-ministro da cultura, que o ano passado recomendou que todos os livros em hebraico da biblioteca de Alexandria fossem queimados. Desconfio que disse 'todos os livros em hebraico' e não 'todos os livros de escritores hebreus' porque esta segunda hipótese teria como efeito o esvaziamento de toda a biblioteca. Mas vamos ser honestos: ninguém esperava que o Egipto ou qualquer país daquela zona pudesse apresentar um candidato credível. Agora, essa pessoa nunca seria eleita a não ser que conseguisse um apoio substancial dos países europeus. Os mesmos países que se recusam a apresentar o Idomeneo de Mozart porque aparece a cabeça de Maomé cortada; os mesmos países que recusam a publicação de artigos e cartoons que condenam o fundamentalismo islâmico; os mesmos países que não erguem a voz contra a fatalidade de uma fatah que teve em Salman Rushdie o rosto de todo um ataque à cultura e intelectualidade europeia. Se George Steiner tem razão quando diz que a Europa se suicidou quando matou os seus judeus, então nós devemos estar a viver os momentos da agonia final, e o velho continente acabará por morrer afogado numa poça do seu próprio sangue.

Da ressureição dos apócrifos

Gustav Mahler, Sinfonia no.2 "Resurreição" (movimento 5, parte 4)

7.9.09

Film Noir

"A realidade é colorida, mas o realismo é preto e branco."


Wim Wenders

A poética do P&B remonta às primeiras cogitações perpetuadas pela fotografia no século XIX, tendo vindo a observar-se um anacrónico recurso a esta mesma estética em abordagens da corrente senda cinematográfica. A questão que subjaz não é senão esta: porque razão e com que objectivos a imagética bitonal tem ganho a propensão vigente? Mero revivalismo? Nostalgia? Virtuosismo, dirão alguns estetas. Porém, cabe ao juízo elucidado ponderar algumas referências e considerações sobre esta temática; a construção da imagística e universo visual ausente de cor, decorre, como a grande maioria das componentes cinematográficas, de uma necessidade técnica, ou mais precisamente, a imagem duotónica é ela própria uma consequência e uma concretização mecânica e processual. A par dos imaginários que daí adviseram, a parceria entre a captação do real e a sua transposição química e reaccional para a superfície fixável marcou os primeiros avanços da imagem fílmica e fotográfica. O conhecimento dos métodos de extracção de imagens e subconsequente impressão e fossilização alberga um vasto repertório histórico e epistemológico, porém, centremo-nos em dois aspectos destacantes: a mecanicidade e o conceito de arquivo.















O Homem da Câmara de Filmar, Dziga Vertov, 1929 Viagem à Lua, Georges Méliès 1902

Bragança de Miranda, no seu ensaio sobre o corpo e a imagem, apologiza o a imagem, na sua essência ontológica, como um simulação (essencial, primordial - distante ainda das formulações de Baudrillard), mas também como uma tecnologia, na medida em que, consumar uma imagem pressupõe uma lesão de um objecto de realidade; num sentido mais lato, criar imagem não é senão a divisão de uma realidade, por conseguinte, assim quem interpreto, classifico, retalho e dilacero a matéria "real" de uma pedra e a consigno como pedra, envolvo-a e revisto-a de significados mas torno-a de igual modo multifacetada, explodida; Platão referia-se às imagens como fingimentos, logros, dissimulações, senão mesmo artifícios tão incipientes e insatisfatórios como um trompe l'oeil mal executado, contudo, mesmo no contexto actual, em as imagens governam e se promiscuem obsessivamente descontroladas, o homem necessita de enunciar, de dispor e fragmentar para melhor se dominar e compreender o que lhe é exterior; nesse sentido, a conquista primordial das técnicas de aquisição de imagem (representação, pintura, escultura, fotografia, cinema, ad infinitum...) são deste modo ancestrais, a própria superfície espelhada de um lago - segundo Miranda - induz-se como uma tecnologia que perturba a inviolabilidade do real, deturpando e abrindo brechas para novas instâncias e interstícios inexplorados - esta é a grande virtude mecânica inerente ao confronto com o real, o devir destas possibilidades exponenciam-se no seu potencial absoluto assim que a aptidão para registar se alia à hipótese de distribuir, imortalizar e tornar facto: o arquivo. Esta é portanto a dicotomica primitiva da imagem: capturar, apreender(e aprender) e assimilar em simbiose estrita com a criação de um imenso inventário, anatomista, ambiental e universal da realidade. Qual é então o papel da imagem polarizada e omissa de cor neste périplo da representação?

Antes de mais, esta reflexão urge de um recenseamento cronológico esclarecedor no que concerne à cor, cuja digressão e incursão no celulóide é posterior à imagem divorciada da paleta cromática. Os primórdios da cor reportam-se às primeiras emulsões ensaiadas por Daguerre (com o Daguerreótipo) e Nicéphore, cujas pretensões incidiram na verosimilhança do carácter cromático na imagem; pardoxalmente, a cor é portanto uma adição, no sentido epistemológico respeitante à imagem fotográfica, uma vez que a génese do registo provém do preparado químico de sais de prata, cuja a inflamação provocada pela exposição à luz resultava na imagem a preto e branco; e porquê um paradoxo? Bom, porque a imagem vislumbrada pelo olho humano se acha repleta de nuances e formulações coloridas, no entanto, escrever/garatujar com luz (foto, luz + grafos, escrita), é por acepção e origem, desvinculado de qualquer cor, mas não por isso, das mesmas nuances e acuidade.

Avançando esta prelecção científica, centremo-nos na representação e de que forma a cor e a sua omissão condiciona, guia e interfere na interpretação e assistência do espectador. No cinema, compreende-se a cor como verbalização ampla e voluptuosa da realidade, ou seja, utiliza-se a cor como excitação de uma realidade, a sua emulação mais lapidar e hiperbólica - o real hiper-realizador, eximiamente conseguido e terminado. Nesta medida, a cinematografia a preto e branco, poderá ser nominada de um meio frio, na terminologia de MacLuhan (teórico dos Média dos anos 60), por conseguinte, representar a preto branco privilegia um dado reduto de inconclusão e réstia que cabe à audiência completar, terminar, pari passu (ao passo que), confrontado com a consagração prodigal e flamejante da cor, o espectador pode somente observar passivamente um mundo que lhe está vedado e no qual não se infere como intermediário ou performador.

Por outro lado, criar a preto e branco é também um recurso de distanciamento e reflexão que impelem o espectador numa atitude introspectiva e meditativa, não obstante, não aniquilando qualquer deleite contemplativo ou poesia formal que daí possa provir. Vejamos exemplos concretos, em tom conclusivo:

-"The Man Who Wasn't There", irmãos Coen, cuja a plástica minimal e noiresca edifica instantes de rara beleza e frívola composição, em que os contrastes claro/escuro desenham e distribuem o olhar concentrando-o nos elementos pungentes da accção.

-"Pleasantville", Gary Ross, em que a inserção do elemento da cor se perfigura como diapasão orientador da tensão.

-"Celebrity" e "Manhattan, Woody Allen, em que a estética P&B assume a sua realização mais condigna e primorosa na cinematografia de Allen.

-"Amantes Regulares" e "Fronteira do Amanhecer", de P. Garrel.

- A obra de Bergamn, carecendo de qualquer esclarecimento.

- "Hiroshima Mon Amour"

- As primeiras obras de Antonioni.

5.9.09

Silênco

Sem o silêncio a alma fica pequena.“Há o silêncio manipulador, o silêncio torturante, o silêncio chantagista, o silêncio rancoroso, o silêncio conivente, o silêncio da zombaria, o silêncio imbecil, o silêncio do desprezo. Há pessoas que matam com seu silêncio. Há silêncios que esmagam a justiça e a bondade, na calada da noite.·O silêncio mais puro é aquele que guarda a confidência. Este silêncio jamais é excessivo. Não se deve apregoar aos quatro ventos o que foi murmurado na intimidade da amizade e do amor. ·”.
Autor: Juscelino Tanaka

Tardes de Bolonha #1

Seguro o cigarro entre os dedos indicador e médio da mão direita

e penso.

Passou muito tempo, a cinza
alcançou o filtro do cigarro
e sou obrigado a tirar outro,
e continuo a fumar.




Levo, p
or acaso, as
mãos aos bolsos e encontro
algumas moedas para pagar
o café.

Deixo-as em cima da mesa e continuo a admirar a cidade da esplanada da Tabacaria,e cada pessoa que atravessa o meu caminho e a cidade, rara aquela que a observa.

Cada um com o seu aspecto e a sua personalidade.

Cada um com uma vida própria.

Dão andamento ao tempo e cravejam a noite de jóias, beijam-se na escuridão
e transitam entre o sentimento e a razão, sempre mantendo no pensamento aquele

medo de solidão.

Merda, a caneta está a falhar,
amanhã pode ser que volte, e continue a escrita. Agora não.
Levanto-me, com as moedas que tirei dos bolsos pago o café,
e sigo, de jornal na mão, de volta a casa.

São estas as tardes de Bolonha, que o acompanham, enquanto escreve numa esplanada qualquer.

Entulho...


4.9.09

O fundo do acaso afundado

"A nossa maior obrigação na vida é aceitar que a vida não quer dizer nada, é vazia, que somos o resultado de um acaso tendo por fundo um universo que também não tem significado nenhum. Universo esse que, claro, também vai acabar como tudo o resto".

Woody Allen


Querem mais?
A alvorada deste apocrofismo é já amanhã, no Expresso.

Sentimentos ou razão?

Vivemos num mundo de frieza emocional. Somos levados a acreditar que não devemos deixar que a emoção tome conta de nós. Caso aconteça, deixamos de ser distintos de todos os outros animais.
A verdade é que a emoção faz de nós, seres humanos, o que somos. Na verdade, se o nosso cérebro não deixasse correr pelas suas veias de neurónios o suculento sentimento, não passaríamos de seres autómatos.
Na realidade, desprezarmos os sentimentos é desprezarmo-nos a nós próprios. No processo da evolução das espécies, ganhamos este privilégio de sentir, que nem todos os seres vivos se podem orgulhar de ter. Como Darwin afirmou, o processo de selecção consiste em prevalecer aquilo que é mais forte, que mais se apropria à sobrevivência. Assim sendo, primeira máxima:

“Não desprezar o sentimento humano”.

Deparamo-nos então com um espada de dois gumes, porquê?
A razão é a nossa mãe. Sempre que estamos em maus lençóis, não há nada como correr para o colo da mãe, assim o fazem os bebés e as crianças e muitos adultos gostavam de fazer. A razão é como uma base sólida de metal onde assentam as casas, pilares de aço maciço onde podem descansar, pachorrentamente, quilos de pedra e madeira.
Sempre se disse: “Contra factos, não há argumentos”. Um facto é um processo inerente à razão. Processo esse que não existe nos sentimentos. Nos sentimentos não há factos, há suposições.
A verdade é que só com suposições é que nasce a teoria.

Ao longo dos tempos, houve quem defendesse que os dados empíricos, ou seja, sentimentos, deviam ser desprezados. A questão fica-se pelo facto de que se não confiarmos nos sentimentos, confiamos em quê? Toda a verdade, ainda que ilusória, é-nos captada do mundo exterior ao nosso corpo pelos sentimentos. Se os desprezarmos, vivemos numa interna incerteza, até mesmo, na incerteza da nossa existência e, para isso, mais vale não existirmos. Haja Fé em algo, Religião, Ciência, Família, no que for. Acreditarmos em nós, na nossa existência, é uma suposição de que existimos que foi retirada pelo sentimento de existirmos, nada mais. “Penso, logo existo”, talvez não se referisse apenas ao pensar lógico, mas ao pensar de sentir, visto que ambos advêm de um mesmo sítio: o cérebro.

Confiar nos sentimentos é deveras um perigo. Sabendo que não são fiáveis, sujeitos a interferências, como quando andamos tolos a tentar sintonizar a frequência de uma estação de rádio, ou a variações tão discrepantes como os andamentos de uma sinfonia, ou mesmo misturas miraculosas de acontecimentos imiscíveis, fazem de um sentimento um bicho raro.

No entanto, há que olhar do ponto de vista científico. Beethoven, ao escrever a Grosse Fuge, queria penetrar nas entranhas, fazer valer o seu valor, ir ao ínfimo, onde tudo começa, olhar para o átomo, o quark, o início da matéria.
Façamos uma viagem no mundo dos sentimentos. Eles ganham vida no nosso cérebro. Uno e Trino. Foi este cérebro que a evolução nos deu. Funciona como um, mas dividido em três partes. O Límbico, o responsável pelos sentimentos, um souvenir da evolução. Nasceu com os mamíferos e fez-nos Reis do Mundo. Vencendo a Uno e Uno dos répteis, que apenas são dotados de um único cérebro, o cérebro réptil, responsável pelas necessidades básicas de um animal, o que faz a distinção entre um animal e uma planta. Este cérebro morre, morremos também, morre o Límbico, ficamos verdadeiramente insensíveis, morre o Neocórtex, ultima aquisição dos mamíferos, morre o ser pensante que há dentro de nós. A vulgar morte cerebral é a morte do Neocórtex, uma vez sem personalidade, apenas existindo, morre aquilo que há dentro de nós, ser humano.

A evolução destes três foi progressiva. Não há animais sem cérebro réptil, portanto este está no início da evolução do cérebro. Depois apareceu o Límbico e, por último, o Neocórtex.

Para que apareceu o cérebro límbico na evolução?

Todos concordamos que há de ser uma mais valia para a sobrevivência, correcto? Mas qual é essa mais valia?

Nasce o cérebro Límbico, nascem os sentimentos.

Ao olhar para um cão a abanar muito a cauda, qualquer pessoa é capaz de dizer qual é o estado de espírito do animal. Já nenhum réptil será capaz de o dizer, pois não tem cérebro Límbico.

Mas paremos com demasiadas viagens no mundo da Ciência, vamos descansar num poema e teorizar:

“O cérebro Límbico foi desenvolvido na evolução para que os animais pudessem rapidamente criar laços entre eles e serve de meio de comunicação eficaz para fuga a todos os perigos e como obtenção de ajuda por parte de outros animais”

Bendita evolução, bendito cérebro.

Como estou maçado de escrever, vou terminar com outra teoria:

“Não se fazem teorias (cérebro da razão – Neocórtex), sem primeiro termos vontade de as fazer, a vontade nasce no cérebro Límbico”.

Pergunto-vos, quem vence, sentimentos ou razão?
(como nada vem do nada, para os mais curiosos, aconselho "Uma Teoria Geral do Amor" de Thomas Lewis e "O Erro de Descartes" de António Damásio)

Sangue e Luz

Foco-me num ponto. Naquele mosquito esborrachado contra a parede, ali, aquela mancha vermelha de sangue que o cabrão me chupou. Agora tento concentrar-me no ponto e ignorar a parede branca. Entretanto, o que consigo fazer é diferente, a mancha de sangue vai espalhando-se pelas paredes, alastrando progressivamente, e quando dou por mim tenho as mãos manchadas de um sangue que não é meu, tenho a roupa encharcada de um sangue que não é meu, tenho o cabelo empastado de um sangue que não é meu e já todos os objectos ganharam uma dimensão única que é a do sangue envolvente. Tento voltar a focar o ponto mas vejo que o mosquito escorrega pela parede, lentamente, como se soubesse que no momento em que tocar no chão o quarto desmorenar-se-á e a sua doença, imparável, incansável mas indolentemente, vai tomar conta de toda a rua, e depois todo o quarteirão, e depois de toda a cidade, e depois do planalto que está para lá da cidade e que, vejo agora, não conseguirá nunca estancar a corrente. E à medida que a torrente se espalha vou perdendo a esperança, vou aumentando a vergonha daquele sangue ter sido, afinal, meu outrora. Mas no fundo do desalento eis que o meu corpo se ergue inesperadamente no ar e lança do seu peito um raio de luz tão forte que por um momento infinito no espaço sinto a minha cabeça latejar tão ardentemente que pediria, se fosse capaz, a mais rápida das mortes. Quando o momento acaba tombo no chão desfeito, só me restando tempo para, durante a queda, ver a cidade limpa e iluminada, outra vez.

3.9.09

Mémoires d'Hadrien

Decidi começar a minha participação neste blog com uma passagem das Memórias de Adriano, da Marguerite Yourcenar, que é simultaneamente uma espécie de provocação para os meus colegas e possíveis leitores.
Em princípio, o judaísmo tem o seu lugar entre as religiões do império; de facto, Israel recusa-se, há séculos, a ser apenas um povo entre povos, possuindo um deus entre os deuses. Os Dácios, ainda os mais selvagens, não ignoram, que o seu Zalmoxis se chama Júpiter em Roma; o Baal púnico do monte Cássio identificou-se sem dificuldade ao Pai que tem na mão a Vitória e do qual nasceu a Sabedoria; os Egípcios, aliás tão orgulhosos das suas fábulas dez vezes seculares, consentem em ver em Osíris um Baco sobrecarregado com atributos fúnebres; o violento Mitra sabe-se irmão de Apolo. Povo algum, excepto Israel, tem a arrogância de possuir toda a verdade nos estreitos limites de uma concepção divina, insultando assim a multiplicidade do deus que contém tudo; nenhum outro deus inspirou aos seus adoradores o desprezo e o ódio por aqueles que oram em altares diferentes.

'Apócrifacias'

Do grego, Apokryphos, é sinónimo de algo cuja autenticidade não se encontra verificada, algo oculto, que obedece a outro rito que não o oficial. No cristianismo, lembrar os textos apócrifos. Para Nietzsche toda a moral era apócrifa, bem como todas as tentativas de dar um ponto de apoio intelectual aos homens: imperativos categóricos de Kant? dúvida metódica de Descartes? Por favor! Mas os apócrifos somos agora nós. Aos vossos olhos, ó conformados do televício! Por isso tremei, que um espectro ensombra a vossa vida: o espectro da verdade apócrifa!

Caleidoscópio

Vivo dentro de um caleidoscópio, ou talvez dentro de uma reacção química.
Sou o princípio de Le Châtelier, estou em equilíbrio, mas em movimento, ou seja, aparentemente está tudo equilibrado, no entanto, há uma balbúrdia interna descomunal.

No caleidoscópio, sou um arco-íris de cores cintilantes que vai produzindo uma História de sensações multifacetadas. Gira um pouco e novas sensações, surpresas. A surpresa é complicada, é como a mudança. São as duas irmãs do destino. Andam todas de mãos dadas quais siameses separadas a nascença por homens encapuçados de branco.

No entanto, há cordões umbilicais que nunca se separam, mesmo com fortes golpes de vida.
O chicote do tempo, tem as suas limitações. Arrasa com tudo, menos com a própria vida, ou vivências, seja o que lá for. Não arrasa com os tais cordões. São feitos de ligas de aço misturadas com fibras de carbono, com pitadas de Boro. Tremendas construções da natureza, ainda que não sejam visíveis.

O caleidoscópio vai girando mais uma vez.

Novas sensações. As sensações são o mundo em que vivemos, sem elas não éramos.
Pode-se considerar então na minha lógica incoerente, que um conjunto de sensações faz um mundo.

O caleidoscópio gira de novo.

Já três mundos foram construídos.

No entanto, nenhum deles me parece bom para se viver. Já girei várias vezes e parecem-se todos como os planetas que o princepizinho visitou. Não há vestígios de serem bons. Nem mesmo o dele. Se calhar é esse o meu problema, devia voltar para o meu.

Bolas!

Perdi o rumo em busca de tantos planetas que já não sei qual é o meu.

Desencontro-me de mim próprio, estou desterrado e com um caleidoscópio na mão. Já girei e não encontrei. Que fazer?

David Gomes
2-09-2009

2.9.09

A coisa está preta!





Eric Drooker - The Maze




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1.9.09

Alvorada dos apócrifos

O Alvorada dos apócrifos é um blog colectivo que teve como causa do seu surgimento o facto de existir uma série de pessoas com muito para contar e grandes capacidades para o fazer mas que não se sentiam suficientemente motivadas para iniciar um projecto individual. A lista de participantes permanecerá reduzida mas com muita qualidade, asseguro-vos. Naturalmente que cada um fica responsável somente por aquilo que escreve. Aqui dentro não seremos unanimes e teremos muito que discordar uns dos outros, mas isso não invalidará a existência deste blog, pelo contrário, será eventualmente a sua força.

Mostrai-vos, apócrifos, aproxima-se a alvorada!