14.10.09

Senhor K

Imagine, caro leitor, um modesto homem de negócios. Distinto, não obstante a vulgaridade. Rotundo, espaçoso, volumoso, ainda assim célere no traje, impecável no corte e lapidar nos asseios indispensáveis a alguém da sua condição e estatuto. O sujeito em questão, chamemos-lhe Senhor K (o "Processo" acorre como base de sustentação existencial deste conto absurdo), por força da distância entre a sede de trabalho onde se dedica ao bulício e a residência portentosa hipotecada onde pernoita, K desloca-se, semanalmente de comboio, digamos, duma província britânica para o centro londrino; 2 horas perfazem este itinerário rotineiro. Consecutivamente, o senhor K experimentava o insuportável sufrágio destas viagens extasiantes: uma juventude leviana e balzaquiana, estrépitos, silvos e companheiros de lugar irrequietos e com tendência para o espamo fácil ou epilepsia, alternadamente. Ao cabo de alguns meses nesta digressão recalcitrante, o senhor K está pelas costuras de tanta incivilidade, e, eis que um frémito de iluminação, uma epifania aflora o seu pensamento molestado; habitualmente, obtia o impresso de viagem pelo serviço informatizado da rede ferroviária, processo que muito celebrava pela facilidade e eremitismo inerentes; ora, numa destas excursões, um rasgo de originalidade arrebata de forma perene o empreendedorismo de K; decide reservar, não apenas o seu lugar habitual na carruagem 22, lugar 125 no sentido do trânsito e à janela, bem como, o lugar contíguo. O senhor K fez assim os trajectos de ida e volta da jornada do dia posterior, de forma sobremaneira mais pacífica, lânguida e sossegada.

Esta insuspeita paz, adquirida somente à aturação de um gasto adicional não demasiadamente impossível, permite que K consiga pela primeira vez em copiosos meses de obstinação, trabalhar no curso do percurso, adiantando assim as tarefas desse dia. Ao cabo de algumas semanas, o leitor informado da perseverança, digamos, excêntrica de K, seria compelido a julgar e presumir que este estivesse em débil conjuntura financeira; contradigo-o, apressado e exegeta leitor, o senhor K, com o esforço adicional, a princípio pesaroso, de assegurar a viagem do seu outro velado, conseguiu fazer reverter para si ganhos extra com uma inusitada promoção por eficiência e rentabilidade; o bilhete excedente, diariamente emitido, lançado e nunca revisto pelo contínuo do vagão, começou, consequentemente, a tornar-se irrisório, pois K suplantáva-o com a hegemónica quantia de cumulativos ganhos e aumentos. Findo um ano, K, houve escalado do cargo de consultor sénior no seio da empresa para o bastião de vice-presidente do departamento de consultoria e gestão da mesma, triplicando o soldo mensal. Analisando, com propriedade empreendedora própria do seu posto, as possibilidades da sua pequena conquista burocrática, K enleia-se totalmente na repercussão deste engenho, evoluindo do modesto lugar geminado para os quatro emparelhados, meia carruagem, a carruagem in totto, até ao apogeu de todo o volume de lugares disponíveis. K descobre deste modo, um meuo económico de "adquirir" a solidão, apenas alojando vácuo e mais vácuo assistindo-o e aplicando-o de forma diplomática. K, comprovou que a misantropia e alienação dependem tanto da vontade do indivíduo como assim o dependem, a fome e vontade de estar no mundo.

Numa primeira e cabal reflexão, o leitor ripostará: Então porque não comprou K um jacto particular? Bom, digamos que o senhor K era um conservador e um amante do contexto ferroviário...


Guilherme Gomes, 14 Outubro, 2009

1 comentário: