23.10.09

O falso leitor

Na plataforma da estação de comboios de Entrecampos um homem dos seus quarenta anos lia Hannah Arendt, 'A condição humana' na tradução (excelente, diga-se) da Relógio d'água. Até aqui, ao que parece, nada de mal. Errado: este homem, aparentemente tão culto e bem formado seria aquilo a que George Steiner classificaria como o 'leitor comum' em oposição ao 'leitor incomum'. Eis a representação do segundo:

Filósofo lendo, Jean-Baptiste Chardin, (1734)

Não vou reproduzir a teoria de Steiner (publicada no ensaio 'O leitor incomum' reproduzido em Portugal na obra 'Paixão Intacta', também publicada pela Relógio d'água), não por seu desmérito mas porque me faltam o engenho e a arte para fazê-lo com a mesma mestria em menos espaço e tempo.
Numa estação de comboios pode ler-se Hannah Arendt, mas não pode perceber-se Hannah Arendt. Certas leituras, e quase sempre as melhores e mais penetrantes exigem um tempo e um modo, no fundo a constituição de um cerimonial bem mais que simbólico. Por isso fazem-me confusão as pessoas que gostam de estudar em centros comerciais ou em casa com a música ligada e o computador acesso. Não é apenas uma maneira de ignorar a obra, é também uma maneira de desrespeitar o autor (embora tal não seja possível segundo as teorias hermenêuticas que colocam em primeiro plano o princípio da liberdade e da independência autoral da obra como livro aberto) e a nossa qualidade de leitores. A questão é que uma pessoa que lê Hannah Arendt devia saber tudo isto, pelo simples facto de já ter chegado a tal patamar de erudição. Ao contrário: como uma peste, alastra a má leitura por entre dedicados leitores. Este tipo de erros desculpam-se apenas à avidez de um jovem de vinte anos que crê não ter tempo. De qualquer modo bem nos avisa Nabokov nas suas aulas de literatura: o que lemos assim não apreendemos: teremos que reler. E acrescento eu: trabalhamos em erro para chegar, bem tarde na vida, ao ponto em que podemos dizer: já sei ler.
José António Borges
23 de Outubro. 2009

4 comentários:

  1. Mas repara José Borges,

    Há pessoas que não lêem para "apreender", fazem-no apenas por puro prazer.

    E isso podem faze-lo em qualquer lugar.

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  2. Concordo com o que o Ega disse. Ler, antes de mais é um prazer. Eu gosto de ler com música, só não leio com música quando sei que me vou distrair com ela. Mas se formos a ver pelo teu ponto de vista, o teu ritual para ler um livro talvez seja não ter barulho, não ter música, estar só com o livro. No entanto, o meu ritual de leitura sempre foi, ler e ouvir música, não só me acompanha a mim como por vezes o livro. É o misturar de vários momentos que se preenchem, eliminando as lacunas de um e do outro.
    Há que pensar que cada um de nós dava panos para mangas para descrever uma espécie por cada pessoa. Por isso somos muito diferentes.
    Não devemos olhar com estranheza para os rituais dos outros se os nossos têm o mesmo potencial de estranheza aos olhos dos nossos vizinhos.

    E não acho que haja sequer um saber ler. Como disse, somos todos diferentes.

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  3. Hannah Arendt, no meu entender, corresponde a um nível de erudição que ainda não separa as ideias das lamechisses.

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  4. Entendo perfeitamente o que pretende dizer. Mas também penso que a sua interpretação do acto de ler enferma de um certo preconceito religioso. Ler pode ser um ritual mas não tem que ser um ritual, pode ser uma liturgia mas não tem que ser uma liturgia. Mas, contrariamente à religião, onde há os praticantes e não praticantes, na leitura são todos praticantes. São é praticantes de maneiras diferentes. Há, digamos assim, os mais e os menos românticos. Ou seja, é mais uma questão estética do que religiosa.

    JR

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