7.9.09

Film Noir

"A realidade é colorida, mas o realismo é preto e branco."


Wim Wenders

A poética do P&B remonta às primeiras cogitações perpetuadas pela fotografia no século XIX, tendo vindo a observar-se um anacrónico recurso a esta mesma estética em abordagens da corrente senda cinematográfica. A questão que subjaz não é senão esta: porque razão e com que objectivos a imagética bitonal tem ganho a propensão vigente? Mero revivalismo? Nostalgia? Virtuosismo, dirão alguns estetas. Porém, cabe ao juízo elucidado ponderar algumas referências e considerações sobre esta temática; a construção da imagística e universo visual ausente de cor, decorre, como a grande maioria das componentes cinematográficas, de uma necessidade técnica, ou mais precisamente, a imagem duotónica é ela própria uma consequência e uma concretização mecânica e processual. A par dos imaginários que daí adviseram, a parceria entre a captação do real e a sua transposição química e reaccional para a superfície fixável marcou os primeiros avanços da imagem fílmica e fotográfica. O conhecimento dos métodos de extracção de imagens e subconsequente impressão e fossilização alberga um vasto repertório histórico e epistemológico, porém, centremo-nos em dois aspectos destacantes: a mecanicidade e o conceito de arquivo.















O Homem da Câmara de Filmar, Dziga Vertov, 1929 Viagem à Lua, Georges Méliès 1902

Bragança de Miranda, no seu ensaio sobre o corpo e a imagem, apologiza o a imagem, na sua essência ontológica, como um simulação (essencial, primordial - distante ainda das formulações de Baudrillard), mas também como uma tecnologia, na medida em que, consumar uma imagem pressupõe uma lesão de um objecto de realidade; num sentido mais lato, criar imagem não é senão a divisão de uma realidade, por conseguinte, assim quem interpreto, classifico, retalho e dilacero a matéria "real" de uma pedra e a consigno como pedra, envolvo-a e revisto-a de significados mas torno-a de igual modo multifacetada, explodida; Platão referia-se às imagens como fingimentos, logros, dissimulações, senão mesmo artifícios tão incipientes e insatisfatórios como um trompe l'oeil mal executado, contudo, mesmo no contexto actual, em as imagens governam e se promiscuem obsessivamente descontroladas, o homem necessita de enunciar, de dispor e fragmentar para melhor se dominar e compreender o que lhe é exterior; nesse sentido, a conquista primordial das técnicas de aquisição de imagem (representação, pintura, escultura, fotografia, cinema, ad infinitum...) são deste modo ancestrais, a própria superfície espelhada de um lago - segundo Miranda - induz-se como uma tecnologia que perturba a inviolabilidade do real, deturpando e abrindo brechas para novas instâncias e interstícios inexplorados - esta é a grande virtude mecânica inerente ao confronto com o real, o devir destas possibilidades exponenciam-se no seu potencial absoluto assim que a aptidão para registar se alia à hipótese de distribuir, imortalizar e tornar facto: o arquivo. Esta é portanto a dicotomica primitiva da imagem: capturar, apreender(e aprender) e assimilar em simbiose estrita com a criação de um imenso inventário, anatomista, ambiental e universal da realidade. Qual é então o papel da imagem polarizada e omissa de cor neste périplo da representação?

Antes de mais, esta reflexão urge de um recenseamento cronológico esclarecedor no que concerne à cor, cuja digressão e incursão no celulóide é posterior à imagem divorciada da paleta cromática. Os primórdios da cor reportam-se às primeiras emulsões ensaiadas por Daguerre (com o Daguerreótipo) e Nicéphore, cujas pretensões incidiram na verosimilhança do carácter cromático na imagem; pardoxalmente, a cor é portanto uma adição, no sentido epistemológico respeitante à imagem fotográfica, uma vez que a génese do registo provém do preparado químico de sais de prata, cuja a inflamação provocada pela exposição à luz resultava na imagem a preto e branco; e porquê um paradoxo? Bom, porque a imagem vislumbrada pelo olho humano se acha repleta de nuances e formulações coloridas, no entanto, escrever/garatujar com luz (foto, luz + grafos, escrita), é por acepção e origem, desvinculado de qualquer cor, mas não por isso, das mesmas nuances e acuidade.

Avançando esta prelecção científica, centremo-nos na representação e de que forma a cor e a sua omissão condiciona, guia e interfere na interpretação e assistência do espectador. No cinema, compreende-se a cor como verbalização ampla e voluptuosa da realidade, ou seja, utiliza-se a cor como excitação de uma realidade, a sua emulação mais lapidar e hiperbólica - o real hiper-realizador, eximiamente conseguido e terminado. Nesta medida, a cinematografia a preto e branco, poderá ser nominada de um meio frio, na terminologia de MacLuhan (teórico dos Média dos anos 60), por conseguinte, representar a preto branco privilegia um dado reduto de inconclusão e réstia que cabe à audiência completar, terminar, pari passu (ao passo que), confrontado com a consagração prodigal e flamejante da cor, o espectador pode somente observar passivamente um mundo que lhe está vedado e no qual não se infere como intermediário ou performador.

Por outro lado, criar a preto e branco é também um recurso de distanciamento e reflexão que impelem o espectador numa atitude introspectiva e meditativa, não obstante, não aniquilando qualquer deleite contemplativo ou poesia formal que daí possa provir. Vejamos exemplos concretos, em tom conclusivo:

-"The Man Who Wasn't There", irmãos Coen, cuja a plástica minimal e noiresca edifica instantes de rara beleza e frívola composição, em que os contrastes claro/escuro desenham e distribuem o olhar concentrando-o nos elementos pungentes da accção.

-"Pleasantville", Gary Ross, em que a inserção do elemento da cor se perfigura como diapasão orientador da tensão.

-"Celebrity" e "Manhattan, Woody Allen, em que a estética P&B assume a sua realização mais condigna e primorosa na cinematografia de Allen.

-"Amantes Regulares" e "Fronteira do Amanhecer", de P. Garrel.

- A obra de Bergamn, carecendo de qualquer esclarecimento.

- "Hiroshima Mon Amour"

- As primeiras obras de Antonioni.

1 comentário:

  1. Gostei muito de ler.

    E já que começas por citar Wim Wenders, seria interessante pegar nos seus filmes 'As asas do desejo' e a sequela 'Tão longe, tão perto' e analisar o efeito da comum passagem do preto e branco para cores e vice versa.

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