12.9.09

Libreto para uma cantata

Esta história aconteceu quando me encontrava observando serenamente a secção de música clássica numa dessas lojas repletas de objectos culturais, em fazendo-me companhia um amigo de gostos mais comerciais que se aborrecia de morte com os meus prolongamentos , quase sempre inconsequentes porque feitos com os bolsos vazios, na ala erudita do estabelecimento. Só que desta vez era diferente, eu estava decidido a presentear-me com um objecto para o qual contribuira com menos uma boa meia dúzia de almoços na faculdade. Procurava pois a interpretação de Rubinstein dos nocturnos de Chopin. Não que eu fosse ou seja particularmente culto, pois que só com aconselhamento maior é que acabo descobrindo as melhores gravações. Em inocente comentário para o meu não menos sófrego e frustrado amigo, digo-lhe: 'É pena não ter a interpretação de Rubinstein, vou ter que me ficar pela de Lilya Zilberstein, que na verdade não fica nada atrás (dando-me ares de quem percebia da coisa) já que isto de piano, violino e música clássica no geral é quase tudo obra de 'Steins', como Bernstein, Ashkenazi, Mendelssohn, que como já se viu, mesmo os que nominalmente não são Stein, são-no espititualmente. Com excepção talvez de um ou outro Karajan que possam aparecer e de moral mais duvidosa'. Ao mesmo tempo que o meu desconfiado amigo esboçava um bocejo, vejo aproximar-se, pelo canto do olho, um sujeito alto e magro, claramente nada parco de recursos que se indignou perante o que eu houvera dito: 'Como pode fazer tal afirmação? Se está a colocar em causa as qualidades morais e a conduta ética de Karajan pois fique sabendo que é apenas a sua ignorância que evidencia'. Eu já tinha ouvido falar de alguma susceptibilidade auditiva dos músicos, mas juro que foi sem qualquer objectivo ou convicção que decidi erguer o braço em saudação para o homem que me abordou enquanto disse um pouco mais alto do que devia 'Heil, mein Führer!'. Foi só no chão com a face direita já a arder que me dei conta que um bom melómano deve ter a lúcidez necessária para nunca chegar ao ponto de considerar Wagner como o seu compositor preferido.

José António Borges
(02.08.08)

[Publicado originalmente n'O espectador intrometido]

4 comentários:

  1. Actualmente, ficar-lhe-á bem endeusar o Richter. Por outro lado, se se quiser referir à Deutsche Grammophon, diga só a "Deutsche". Nunca, mas nunca diga que gosta de Tchaikovski. Ah, quanto às sinfonias de Beethoven não se livra mesmo do karajan.

    P.S. Se falar de Mahler, nunca fale na Morte em Veneza. Se precisar de mais conselhos terei todo o gosto.

    JR

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  2. Ena, tanta violência.

    José Ricardo, é só uma ficção...

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  3. Qual violência! Só quero mesmo ajudar. Há coisas que não se podem dizer em certos meios intelectais e eruditos sob pena de se ser trucidado. Vá, amesquinhado. Outras que, pelo contrário, dever-se-ão forçosamente dizer para que o faro dos interlocutores reconheça a presença de um ser humano aceitável. Como conheço algumas dessas coisas que se podem ou não podem dizer estava apenas a querer ajudar. A sério.

    JR

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  4. Nesse caso só lhe tenho a agradecer e dizer-lhe que não tinha compreendido a sua intenção.

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