21.9.09

Não queria patear
Antes de conhecer
Os cães negros do México
Que dormem sem sonhar
Os macacos de rabo pelado
Devoradores de trópicos
As aranhas de prata
De ninhos cobertos de bolhas
Não queria patear
Sem saber se a lua
Sob um falso ar de ceitil
Tem um lado pontiagudo
Se o sol é frio
Se as quatro estações
São só realmente quatro
Sem ter experimentado
Passear de vestido
Nos grandes bulevares
Sem ter espreitado
Por um olho de esgoto
Sem ter metido o zezé
Nuns escaninhos bizarros
Não queria acabar
Sem conhecer a lepra
Ou as sete doenças
Que por lá se apanham
Nem o bom nem o mau
Me dariam desgosto
Se se se eu soubesse
Que os podia estrear
E há também
Tudo o que eu conheço
Tudo o que eu aprecio
Que sei que me dá gozo
O fundo verde do mar
Onde valsam fios de alga
Sobre a areia ondulada
A erva torrada de Junho
A terra que estala
O odor das coníferas
E os beijos daquela
Que isto mais que aquilo
A bela que aqui 'stá
O meu ursinho d'Ursula
Não queria patear
Antes de ter gasto
Sua boca com a minha boca
Seu corpo com as minhas mãos
O resto com os meus olhos
Não digo mais é preciso
Manter-se venerador
Não queria morrer
Sem que tenham inventado
As rosas eternas
O dia de duas horas
O mar na montanha
A montanha no mar
O fim de toda ador
Os jornais a cores
As crianças contentes
E tantas coisas mais
Que dormem nas cabeças
Dos geniais engenheiros
Dos jardineiros joviais
Dos sisudos socialistas
Dos urbanos urbanistas
E dos pensativos pensadores
Tantas coisas a ver
A ver e a zouvir
Tanto tempo a esperar
A procurar no escuro

E eu vejo o fim
Que fervilha e vem chegando
Com sua carranca feia
E que me abre os braços
De retorcida rã

Não queria morrer
Não senhor não senhora
Antes de ter provado o gosto que me assombra
O gosto que é mais forte
Não queria morrer
Antes de ter provado
O sabor da morte...



Boris Vian (1947-1959)

2 comentários:

  1. Adoro Boris Vian. Li há uns tempos o "Arrache Couer" (Arranca-Corações), editado pela Estampa (aqueles livrinhos formato de bolso com páginas azuis aciduladas e pungentes na transmissão de um carácter frívolo e oculto de uma poesia mais simbolista e esotérica), e, conheço alguma da obra musical dele.

    Uma bela escolha.

    ResponderEliminar
  2. Eu por acaso acho essa edição da estampa bem inoportuna, e penso mesmo que é lamentável uma obra tão notável não ter direito a edição mais digna em Portugal... Mas sim, Boris Vian é estupendo, mesmo o seu jazz!

    ResponderEliminar