4.9.09

Sangue e Luz

Foco-me num ponto. Naquele mosquito esborrachado contra a parede, ali, aquela mancha vermelha de sangue que o cabrão me chupou. Agora tento concentrar-me no ponto e ignorar a parede branca. Entretanto, o que consigo fazer é diferente, a mancha de sangue vai espalhando-se pelas paredes, alastrando progressivamente, e quando dou por mim tenho as mãos manchadas de um sangue que não é meu, tenho a roupa encharcada de um sangue que não é meu, tenho o cabelo empastado de um sangue que não é meu e já todos os objectos ganharam uma dimensão única que é a do sangue envolvente. Tento voltar a focar o ponto mas vejo que o mosquito escorrega pela parede, lentamente, como se soubesse que no momento em que tocar no chão o quarto desmorenar-se-á e a sua doença, imparável, incansável mas indolentemente, vai tomar conta de toda a rua, e depois todo o quarteirão, e depois de toda a cidade, e depois do planalto que está para lá da cidade e que, vejo agora, não conseguirá nunca estancar a corrente. E à medida que a torrente se espalha vou perdendo a esperança, vou aumentando a vergonha daquele sangue ter sido, afinal, meu outrora. Mas no fundo do desalento eis que o meu corpo se ergue inesperadamente no ar e lança do seu peito um raio de luz tão forte que por um momento infinito no espaço sinto a minha cabeça latejar tão ardentemente que pediria, se fosse capaz, a mais rápida das mortes. Quando o momento acaba tombo no chão desfeito, só me restando tempo para, durante a queda, ver a cidade limpa e iluminada, outra vez.

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